terça-feira, 13 de maio de 2014

Reflexões sobre uma cidade que não é minha


de repente eu estava dentro de um ônibus indo em direção a um estado que não conhecia, eu já tinha chorado todas e tinha voltado a fumar escondida porque sabia de algo que estava visível apenas nas entrelinhas. olhei pro lado, tava você lá, viajando de coração apertado ali comigo, assim, quase sem querer. te levei pra uma das cidades mais bonitas da minha vida, era tudo uma pintura, era tudo sagrado, era tudo.
tudo o que eu tinha eu levei naquela mala tão pequena, meu deus. o ar já tinha começado a manifestar as primeiras impressões de infinito, tudo parecia um sonho maluco, sem contorno e formas definidas, tinha estrada, uma estrada especialmente pavimentada pra dois. tinha também a voz etérea de uma moça que eu não conhecia, e que me acompanhou a viagem toda. que beleza estonteante eu vi ali. eu vi tristeza também, principalmente a minha, mas só um amor não realizado pode ser bonito -  disse aquele cineasta que eu simplesmente detesto. eram sete da noite e não tinha horário de verão, era outono já, um arco-iris riscou o céu depois da chuva, eu juro por deus. parecia mentira, parecia conto de bêbado que ama demais, mas eu juro: um arco-iris riscou o céu de ponta a ponta e nós embaixo feito dois imbecis olhando pra peças de prata e ouro do período colonial.eu entrei em duas mil igrejas, chorei em todas elas e fiz o mesmo pedido em todas elas. um lugar de culto, um lugar de resistência. adentrei muitos lugares e eu pertenci a cada um deles saboreando o fim iminente. engraçado como a gente sempre sabe. sempre. fiz muitas preces pra você ficar; mas você nunca esteve. então eu sorria, sorria com força, apertava sua mão e pedia um chopp. suava tanto...o que mais eu poderia fazer? eu tentei eternizar aqueles momentos e aqueles cheiros e aquelas rezas. visitamos cemitérios do século XVIII pulando os muros como dois comparsas adentrando a noite e os silêncios eram tão espaçados, assim como nossos passos. o céu dessa cidade que não era minha acolheu minha tristeza e respeitou minha solidão; ele exaltou minhas urgências enquanto eu sonhava constantemente com o fogo do inferno. o céu dessa cidade que não era minha era cor de lavanda; eu amei naquela cidade, talvez tenha sido ali que eu percebi que amaria para sempre. atmosfericamente eu senti como se flutuasse pelas ruas de pedra e tivemos chuva - sim, mais um capricho dos deuses e santos - pra lavar um pouco de nossas almas encardidas. a chuva lavou meu rosto e você olhou pra mim: eu desejei ser a moça mais bonita do mundo inteiro. em todos os retratos que você tirou de mim naquela cidade eu só consegui parecer triste e calada. triste e calada. talvez seja a definição mais latente de uma vivência expressiva : por dentro eu tinha o universo todo, estrelas cadentes e planetas, frases lindas de efeito, amor em estado líquido, sexo e outros acidentes. por fora, cinza e ossos.
eu sonho muito com esses cemitérios e igrejas, com essas ladeiras e esses céus, sonho porque às vezes tenho medo de perder essas memórias. sonho porque às vezes  peço  pra esquecer tudo isso. não sei se é só um bloqueio espacial. não sei se é só falta de preparo com as temporalidades do sofrimento. meu pedido não se realizou; jamais poderia.

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